Análise
da música Construção – Chico Buarque sobre a realidade social
Música
Construção – Chico Buarque
Por
Roniel Sampaio Silva
As
músicas carregam uma constelação de sentidos os quais podem ser
explorados de diversas formas, inclusive, atrelando a letra de uma
música a um determinado contexto social aparentemente sem conexão.
Enxergar essas conexões é ver a realidade de outra maneira por meio
da sociologia. Nessa canção é possível compreender melhor o
conceito de consciência de classe de Karl Marx.
Aspectos
conceituais fundamentais
Para
Marx, as sociedades são formadas pela dialética das condições
materiais e antagonismo de classes. Os indivíduos são agrupados em
classes sociais de acordo com seu papel no processo produtivo. No
capitalismo, o conjunto de indivíduos que detém o controle dos
meios de produção faz parte da burguesia, enquanto os indivíduos
que possuem apenas a força de trabalho pertence ao proletariado. A
Luta de classes diz respeito aos meios que cada um utiliza para fazer
valer seus interesses de classe. Para fazer valer tais interesses é
necessário fundamentalmente ter consciência de classe que faz
parte. Consciência de classe diz respeito a percepção sobre o seu
papel no processo produtivo e a consciência do seu poder de
articulação coletiva. Contrário a isso, temos o conceito de falsa
consciência de classe e ideologia que é a distorção dessa
percepção.
A
canção
A
música “Construção – de Chico Buarque” foi composta no
começo da década de 1970 quando o cantor retorna para o Brasil
depois de um longo período de exílio na Itália. A análise que
esboço é que a “construção” diz respeito às mudanças das
relações de trabalho no Brasil instaurado pelo Regime Militar. A
canção é dividida em três partes. Cada uma das três partes da
música diz respeito a uma rotina de um segmento da classe operária:
1- O trabalhador sem consciência de classe e que é extremamente
explorado, 2- O trabalhador com consciência de classe, 3- A alta
classe média e pequena burguesia.
A
música construção revela a genialidade do compositor em mudar
poucas palavras e dar novos sentidos as mesmas construções da
letra. A canção mostra diferentes perspectivas de trabalhadores e
suas rotinas. A música busca dar um sentido amplo a condição da
classe operária naquele momento. Tanto a primeira parte quanto a
segunda revelam um operário que é sacrificado para manutenção da
“construção”, que poderia ser entendido como o sistema
econômico e social o qual sustentava o regime. Nesta canção o
trabalhador é visto de duas perspectivas e em todas elas é visto
como um a gente de criação e manutenção da construção e ao
mesmo tempo como um agente a ser combatido. Deste modo, a função de
trabalhador cria circunstancialmente uma situação de risco para o
trabalhador descrito na primeira e na segunda parte da música. A
classe média com receio de se submeter aos mesmos riscos dos demais
trabalhadores reproduzem a “construção” e agradecem a sua
existência.
Primeira
Parte (Trabalhadores sem consciência de classe e altamente
precarizado)
A
primeira parte refere-se à rotina do trabalhador sem consciência de
classe e que ainda assim sofre com a precarização do trabalho
característica do “milagre brasileiro”. No período da década
de 1970 houve um considerável crescimento econômico às custas da
ampliação da exploração da classe trabalhadora.
De
acordo com a narrativa deste trecho da canção, o trabalhador não
se enxerga como pertencente a uma classe social que tem uma
trajetória histórica. Enxerga tão somente o presente, o “carpe
diem”. “Amou daquela vez como se fosse a última / Beijou sua
mulher como se fosse a última”. O distanciamento da consciência
de classe a faz pensar apenas de forma individual e privada, pensar
não como classe, mas como individuo e família, pensar nos seus
filhos “E cada filho seu como se fosse o único”. Sua trajetória
não faz ter certeza de que rumo está seguindo no curso da história
(E atravessou a rua com seu passo tímido).
O
trecho “Subiu na construção como se fosse máquina” diz
respeito ao trabalho manual e material (“Quatro paredes sólidas”)
exercido por este segmento da classe operária, apesar da situação
de exploração tal trabalhador apenas lamenta e não transforma seu
lamento (lágrima) em contestação. Seguindo a narrativa, a estrofe
seguinte mostra como o seu salário mal satisfaz suas necessidades de
existência (comida, descanso, lazer).
O
trabalhador morre tragicamente no ambiente de trabalho e sua foça de
trabalho é anulada de modo a não mais favorecer o sistema
(atrapalhando o tráfego).
Amou
daquela vez como se fosse a última
Beijou
sua mulher como se fosse a última
E
cada filho seu como se fosse o único
E
atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu
a construção como se fosse máquina
Ergueu
no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo
com tijolo num desenho mágico
Seus
olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou
pra descansar como se fosse sábado
Comeu
feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu
e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou
e gargalhou como se ouvisse música
E
tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E
flutuou no ar como se fosse um pássaro
E
se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou
no meio do passeio público
Morreu
na contramão, atrapalhando o tráfego
Segunda
Parte (Trabalhadores contestadores com consciência de classe)
A
Segunda parte diz respeito a um trabalhador com consciência de
classe e que se organiza para combater o regime, em especial os
trabalhadores da Guerrilha do Araguaia. Assim como o operário braçal
corre um perigo não pela sua situação de trabalho, mas pelo seu
posicionamento em relação ao regime. O “filho pródigo”
descrito no verso faz alusão as filhos que precisavam sair da casa
dos pais para se esconder dos agentes do regime, enquanto o “passo
bêbado” faz referência a caminhar titubeante de um fugitivo das
autoridades.
O
fato deste trabalhador ter mais esclarecimento a utopia idealizada
para o país não é preliminarmente um projeto material e sim uma
idealização, razão pela qual a segunda estrofe abaixo faz alusão
a um projeto imaginário de país cujo seu olhar está sempre atento
ao “tráfego”, munido de um “desenho lógico”, um projeto de
país a partir do sonho de ter o proletariado como real titular do
poder. Na referência “olhos embotados de cimento e tráfego” faz
alusão à materialidade das coisas (cimento) e à análise dialética
da conjuntura política (tráfego).
Comer,
descansar, berber, são necessidades materiais de todo e qualquer
trabalhador independentemente, o que faz diferenciá-lo é sua
consciência de classe. A morte do trabalhador dotado de consciência
de classe muitas vezes é uma consequência da sua contestação do
próprio capital. A expressão “passeio náufrago” pode ser
entendida como os guerrilheiros que foram mortos às margens do Rio
Araguaia os quais morreram na “contramão atrapalhando o público”,
os interesses do capital travestidos de público endossados pelo
comitê de negócios da burguesia, o Estado.
Amou
daquela vez como se fosse o último
Beijou
sua mulher como se fosse a única
E
cada filho seu como se fosse o pródigo
E
atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu
a construção como se fosse sólido
Ergueu
no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo
com tijolo num desenho lógico
Seus
olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou
pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu
feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu
e soluçou como se fosse máquina
Dançou
e gargalhou como se fosse o próximo
E
tropeçou no céu como se ouvisse música
E
flutuou no ar como se fosse sábado
E
se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou
no meio do passeio náufrago
Morreu
na contramão atrapalhando o público
Terceira
Parte (A alta classe média e pequena burguesia)
Já
na terceira parte da canção faz alusão a uma classe média
improdutiva que não produz a realidade material e que apenas ajuda a
reproduzir ideologicamente os privilégios da burguesia. Este trecho
“Ergueu no patamar quatro paredes flácidas” pode ser associado a
ideologia. . Como nem participa do processo de produção da
construção, apenas na reprodução, sua vida ou sua morte não faz
diferença “Morreu na contramão atrapalhando o sábado”. A
classe média tem uma grande ojeriza e medo de ter uma condição
material parecida com a dos demais operários, por isso é muito
grata (“Deus lhe pague”) à ação do Estado que lhe poupa de
parte das atrocidades proferidas aos outros trabalhadores 1-“Pelos
andaimes pingentes que a gente tem que cair” (trabalhadores braçais
vítimas de acidente de trabalho), 2-“Pela fumaça e a desgraça
que a gente tem que tossir” (trabalhadores contestadores)
Amou
daquela vez como se fosse máquina
Beijou
sua mulher como se fosse lógico
Ergueu
no patamar quatro paredes flácidas
Sentou
pra descansar como se fosse um pássaro
E
flutuou no ar como se fosse um príncipe
E
se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu
na contramão atrapalhando o sábado
Por
esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A
certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por
me deixar respirar, por me deixar existir
Deus
lhe pague
Pela
cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela
fumaça e a desgraça que a gente tem que tossir
Pelos
andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus
lhe pague
Pela
mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E
pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E
pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus
lhe pague
A
música construção conta a trajetória diária da classe
trabalhadora e como se dá sua relação com o cotidiano, com a vida
e com a morte. Cada um dos segmentos do proletariado tem uma relação
diferenciada com o capital, o risco, as recompensas e os esforços. O
risco e a diferença que cada um faz parte em relação a produção
e reprodução do capital é diferente. Em suma, nossa vida material
é especialmente limitada tendo em vista o longo processo histórico
de luta de classes. Por isso que a narrativa é finalizada com a
morte.
Referências
Johnson,
A. G. Dicionário de sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997.
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