segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Análise da Música: A construção de Chico Buarque


Análise da música Construção – Chico Buarque sobre a realidade social
Música Construção – Chico Buarque
Por Roniel Sampaio Silva
As músicas carregam uma constelação de sentidos os quais podem ser explorados de diversas formas, inclusive, atrelando a letra de uma música a um determinado contexto social aparentemente sem conexão. Enxergar essas conexões é ver a realidade de outra maneira por meio da sociologia. Nessa canção é possível compreender melhor o conceito de consciência de classe de Karl Marx.
Aspectos conceituais fundamentais
Para Marx, as sociedades são formadas pela dialética das condições materiais e antagonismo de classes. Os indivíduos são agrupados em classes sociais de acordo com seu papel no processo produtivo. No capitalismo, o conjunto de indivíduos que detém o controle dos meios de produção faz parte da burguesia, enquanto os indivíduos que possuem apenas a força de trabalho pertence ao proletariado. A Luta de classes diz respeito aos meios que cada um utiliza para fazer valer seus interesses de classe. Para fazer valer tais interesses é necessário fundamentalmente ter consciência de classe que faz parte. Consciência de classe diz respeito a percepção sobre o seu papel no processo produtivo e a consciência do seu poder de articulação coletiva. Contrário a isso, temos o conceito de falsa consciência de classe e ideologia que é a distorção dessa percepção.
A canção
A música “Construção – de Chico Buarque” foi composta no começo da década de 1970 quando o cantor retorna para o Brasil depois de um longo período de exílio na Itália. A análise que esboço é que a “construção” diz respeito às mudanças das relações de trabalho no Brasil instaurado pelo Regime Militar. A canção é dividida em três partes. Cada uma das três partes da música diz respeito a uma rotina de um segmento da classe operária: 1- O trabalhador sem consciência de classe e que é extremamente explorado, 2- O trabalhador com consciência de classe, 3- A alta classe média e pequena burguesia.
A música construção revela a genialidade do compositor em mudar poucas palavras e dar novos sentidos as mesmas construções da letra. A canção mostra diferentes perspectivas de trabalhadores e suas rotinas. A música busca dar um sentido amplo a condição da classe operária naquele momento. Tanto a primeira parte quanto a segunda revelam um operário que é sacrificado para manutenção da “construção”, que poderia ser entendido como o sistema econômico e social o qual sustentava o regime. Nesta canção o trabalhador é visto de duas perspectivas e em todas elas é visto como um a gente de criação e manutenção da construção e ao mesmo tempo como um agente a ser combatido. Deste modo, a função de trabalhador cria circunstancialmente uma situação de risco para o trabalhador descrito na primeira e na segunda parte da música. A classe média com receio de se submeter aos mesmos riscos dos demais trabalhadores reproduzem a “construção” e agradecem a sua existência.
Primeira Parte (Trabalhadores sem consciência de classe e altamente precarizado)
A primeira parte refere-se à rotina do trabalhador sem consciência de classe e que ainda assim sofre com a precarização do trabalho característica do “milagre brasileiro”. No período da década de 1970 houve um considerável crescimento econômico às custas da ampliação da exploração da classe trabalhadora.
De acordo com a narrativa deste trecho da canção, o trabalhador não se enxerga como pertencente a uma classe social que tem uma trajetória histórica. Enxerga tão somente o presente, o “carpe diem”. “Amou daquela vez como se fosse a última / Beijou sua mulher como se fosse a última”. O distanciamento da consciência de classe a faz pensar apenas de forma individual e privada, pensar não como classe, mas como individuo e família, pensar nos seus filhos “E cada filho seu como se fosse o único”. Sua trajetória não faz ter certeza de que rumo está seguindo no curso da história (E atravessou a rua com seu passo tímido).
O trecho “Subiu na construção como se fosse máquina” diz respeito ao trabalho manual e material (“Quatro paredes sólidas”) exercido por este segmento da classe operária, apesar da situação de exploração tal trabalhador apenas lamenta e não transforma seu lamento (lágrima) em contestação. Seguindo a narrativa, a estrofe seguinte mostra como o seu salário mal satisfaz suas necessidades de existência (comida, descanso, lazer).
O trabalhador morre tragicamente no ambiente de trabalho e sua foça de trabalho é anulada de modo a não mais favorecer o sistema (atrapalhando o tráfego).
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego
Segunda Parte (Trabalhadores contestadores com consciência de classe)
A Segunda parte diz respeito a um trabalhador com consciência de classe e que se organiza para combater o regime, em especial os trabalhadores da Guerrilha do Araguaia. Assim como o operário braçal corre um perigo não pela sua situação de trabalho, mas pelo seu posicionamento em relação ao regime. O “filho pródigo” descrito no verso faz alusão as filhos que precisavam sair da casa dos pais para se esconder dos agentes do regime, enquanto o “passo bêbado” faz referência a caminhar titubeante de um fugitivo das autoridades.
O fato deste trabalhador ter mais esclarecimento a utopia idealizada para o país não é preliminarmente um projeto material e sim uma idealização, razão pela qual a segunda estrofe abaixo faz alusão a um projeto imaginário de país cujo seu olhar está sempre atento ao “tráfego”, munido de um “desenho lógico”, um projeto de país a partir do sonho de ter o proletariado como real titular do poder. Na referência “olhos embotados de cimento e tráfego” faz alusão à materialidade das coisas (cimento) e à análise dialética da conjuntura política (tráfego).
Comer, descansar, berber, são necessidades materiais de todo e qualquer trabalhador independentemente, o que faz diferenciá-lo é sua consciência de classe. A morte do trabalhador dotado de consciência de classe muitas vezes é uma consequência da sua contestação do próprio capital. A expressão “passeio náufrago” pode ser entendida como os guerrilheiros que foram mortos às margens do Rio Araguaia os quais morreram na “contramão atrapalhando o público”, os interesses do capital travestidos de público endossados pelo comitê de negócios da burguesia, o Estado.
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Terceira Parte (A alta classe média e pequena burguesia)
Já na terceira parte da canção faz alusão a uma classe média improdutiva que não produz a realidade material e que apenas ajuda a reproduzir ideologicamente os privilégios da burguesia. Este trecho “Ergueu no patamar quatro paredes flácidas” pode ser associado a ideologia. . Como nem participa do processo de produção da construção, apenas na reprodução, sua vida ou sua morte não faz diferença “Morreu na contramão atrapalhando o sábado”. A classe média tem uma grande ojeriza e medo de ter uma condição material parecida com a dos demais operários, por isso é muito grata (“Deus lhe pague”) à ação do Estado que lhe poupa de parte das atrocidades proferidas aos outros trabalhadores 1-“Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair” (trabalhadores braçais vítimas de acidente de trabalho), 2-“Pela fumaça e a desgraça que a gente tem que tossir” (trabalhadores contestadores)
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
A música construção conta a trajetória diária da classe trabalhadora e como se dá sua relação com o cotidiano, com a vida e com a morte. Cada um dos segmentos do proletariado tem uma relação diferenciada com o capital, o risco, as recompensas e os esforços. O risco e a diferença que cada um faz parte em relação a produção e reprodução do capital é diferente. Em suma, nossa vida material é especialmente limitada tendo em vista o longo processo histórico de luta de classes. Por isso que a narrativa é finalizada com a morte.
Referências
Johnson, A. G. Dicionário de sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997.

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